Quando eu andava por
tudo quanto era sala de cinema de Lisboa, do Bélgica ao Rex, do Royal ao
Palatino, do Campolide ao Lys, do Tivoli ao Éden, naquela gloriosa década da
minha adolescência em que tanta coisa aconteceu ao cinema, o CinemaScope, o
Todd-Ao, o Ingmar Bergman, a Nouvelle Vague, o Paulo Rocha…quase nunca fui ao
Odéon.
Já vira o Joselito, já usava calças compridas, rompiam os anos 60
e daí à sua irreversível queda, o Odéon esqueceu-se dos Stroheims, dos Langs,
dos Hitchcocks, dos Capras com que abriu e só mostrava dramas lacrimejantes
vindos do México ou da vizinha Espanha sobre os quais sorríamos, nós os muito
lidos, com infindo desdém.
Ainda lá fui ver os balbúcios de uma nova
vaga espanhola, o Summers e o Picazo ( que lindo filme, “La Tia Tula”) e de
resto deixávamos aquela sala para as criadas de servir que lá iam aos domingos,
como quem lia o folhetim ou ouvia o Tide, qualquer que fosse o filme, chorar com
mães solteiras, filhos desencontrados, mal-casadas. Seriam elas, classe em
extinção, quem tinha razão por tanto chorar com a “Ama Rosa” com a Império
Argentina e com os inenarráveis “Filhos de Ninguém” com Amedeo Nazzari.
Mas hoje dá-me saudades desses filmes que quase não vi, que reuniam
milhares de mulheres sozinhas que ali passavam a tarde de domingo, enquanto o
magala que lhes prometera casamento, ia e vinha das colónias quando não de outra
mulher. Era todo um mundo que apenas entrevi aqui em casa, cartas, madrinhas de
guerra, choros. Que canções piegas e dramas extremos ajudavam a passar.
Para nós, cinéfilos de primeira, era analfabeta esta cinefilia de
segunda, feita só de sentimentos pobres. Mas seria de segunda? Quando agora se
redescobrem os melodramas italianos justamente com as Silvanas Pampaninis e os
Amedeo Nazzari, quando eu próprio ponho as mãos no fogo pela excepcional Sara
Montiel, quando compro cassetes para ver a Lola Flores dançar, a mesma Lola
Flores a quem pedi autógrafo neste mesmo Odéon, que procuro, que inocente
cinefilia busco? Saudades de um cinema popular e mulherengo – nós que
percorríamos as capelinhas do cinema popular e varonil, machão, de cow-boys e
putas na sala em frente com os belos Boeticher ou os tremendos Fuller a passar
no Olympia.
Mas do que eu gosto é da sala, uma sala de cinema, uma
autêntica sala de cinema, com foyers, varandas, balcões, écrans e aquele tecto
de abrir em pau-do-brasil, tecto de verbena, de opereta neste que foi o templo
da espanholada na alma de Lisboa.
Não, não façam dele uma sala de teatro,
como já ouvi quererem. Nem uma sala multi-usos com conferências, o Odéon é uma
sala de cinema como já quase não há, uma sala para se ficar às escuras e quando
o filme acaba e se abrem as portas à direita, a luz do dia ferir os nossos olhos
marejados, evidentemente, de sentimentais, odeónicas lágrimas.
Eu sei que
aqui cantou a Hermínia e eu próprio vi cantar a Lola Flores e o Calvário.
Sim.
Mas o Odéon é um cinema para, às escuras,
chorarmos.
Chorarmos as mulheres esquecidas pelos magalas como nos filmes
que aqui passavam ou nos de Mizoguchi; chorarmos os amores trocados como em
Kazan ou em Luís César Amadori, tremermos com vinganças terríveis ou destinos
desnorteados como em Buñuel.
Como era bom abrir-se o Odéon de
novo.
E como era bom abri-lo com um filme que nunca lá passou mas
sintetiza tudo o que nele se passou, todos os lenços molhados: “Cumbres
Borrascosas”, o sublime Monte dos Vendavais do surrealista popular que foi
Buñuel.
Abram-me o Odéon, por favor.
E eu diria, em memória das
vítimas do cinema, dos que acreditaram nos amores eternos e nas promessas de um
beijo, em memória das mulheres que nessa sala choraram e se consolaram por tanto
lavarem a louça das patroas.